• 21-11-2024

avisa quando chegar, viu?

o cuidado como dimensão político-afetiva da proteção entre pessoas negras por joão marcos bigon

tá,  

que fique claro que odeio a banalização da palavra afeto  

mais ainda quando ela falou está acompanhada da palavra “preto” 

mas é necessário resgatar a palavra nesse texto para que eu consiga conversar com você que lê  

afinal, não tenho outra palavra melhor  

 

escuto constantes relatos sobre como o silêncio de gente preta mais velha representa outras coisas para além do silêncio  

lembro da grada logo no começo do memórias da plantação falando sobre como a máscara da anastácia representa o domínio da colonização sobre a boca de pessoas negras 

dito isso, nós que falamos tanto precisamos aprender a entender a pedagogia do silêncio, a economia das palavras e os ditos populares  

a cultura popular é verborrágica 

a gente compreende isso em várias coisas mas acha que tudo precisa de uma grande performance discursiva pra acontecer  

a gente é isso, uma geração barulhenta, falastrona e do discurso 

a internet escancara isso né  

não há diálogo  

há discurso  

eu discordo de vc, logo crio um vídeo resposta, um texto enorme ou um exposed  

não chamou na xinxa pra desenrolar  

 

das coisas da linguagem, as que me encantam são as mensagens e códigos que a gente inventa para educar e proteger nossa gente do mundo em que vivemos  

não veste isso 

leva identidade  

não fala aquilo  

vai com deus e volta com ele  

avisa quando chegar  

 

o “avisa quando chegar” é um dos métodos mais bonitos e sutis de dizer “me importo com seu deslocamento, com sua segurança, sei o que vc pode passar no caminho” 

caminho, rota e interrupção são desde o tráfico atlântico uma questão dolorosa para a população negra 

fluxo é uma questão e sempre será   

ciclos escolares que iniciam e não terminam,  

relacionamentos que se encerram de forma abrupta, 

gerações interrompidas, 

rotas diárias atravessadas por barricadas, postos de polícia ou o caos urbano  

avisar quando chegar é mais do que só uma mensagem enviada  

 

[Não deixe de baixar o Denga Love e participe do maior app de conexão para pessoas negras do Brasil.   https://www.dengalove.com  

 

é um dos códigos que desenvolvemos para organizar a segurança coletiva  

ter dimensão de que a cidade é perigosa, de que ela ameaça o corpo, a mente e a alma de pessoas negr4s faz com que ocorra em uma simples frase a enunciação de um carinho, cuidado, proteção e noção política que talvez um “eu te amo” nunca comunicasse  

pessoas que talvez sequer tenham conversado sobre coisas profundas da vida expressam seu apreço por essa mesma vida dizendo: “compartilha a localização pra que eu te acompanhe”  

e as vezes estamos falando de pessoas que não terão como intervir caso ocorra algo 

mas que querem saber, cuidar e atender, até por que não poderão mudar  

 

pq no final, tem a ver com isso  

a consciência de que a realidade racial na qual estamos imersos não é mutável  

ela é parte de uma sinfonia caótica e torta que nós aprendemos a duras penas a ouvir, identificar, cantar e dançar  

ser n3gro e caminhar neste mundo é como mapear os buracos de uma estrada em que caminhamos de olhos vendados  

calculamos de forma estratégica cada passo, o ritmo, a distância e a consistência do chão  

pisando muitas vezes descalços mas com a destreza de quem aprendeu aos 7 anos de idade que ter a identidade no bolso mesmo quando você está apenas de short soltando pipa na rua é mais importante do que qualquer outra coisa  

 

quem ensina esse modelo de afeto que se manifesta no cuidado político são avós  

são avôs taciturnos, às vezes grosseiros e quietos  

avós e avôs netos da escr4vidão, filhos dela  

que até fogem do tema e recusam essa ideia de termos raciais  

mas que manifestam profundo conhecimento sobre cada coisa que compõem a atmosfera envenenada do mundo colonial  

certa vez sueli carneiro disse ao mano brown que os seus pais não eram ativistas do mov n3gro, mas que eles eram dotados de profunda compreensão sobre o universo n3gro 

pois é  

quem me ensinou sobre cuidar da minha irmã, da minha mãe e da minha namorada ou noiva foi uma senhora que nunca falou a palavra n3gro, pr3to ou raça  

 

minha avó apenas dizia: 

gente como a gente tem que falar direito, não pode abaixar a cabeça, tem que andar bem arrumado e saber circular em todo e qualquer lugar  

bem, ela não falava desse jeito mas era por aí  

brilhante, estratégica, genial, preta 

minha avó, balbina rodrigues da silva 

mais conhecida no bairro como tia balbina  

 

4ª série completa  

elegante, bem educada, mãe de 5 mulheres putas, todas escuras, todas a frente  

a vanguarda da revolução  

eu fui criado nesse ambiente  

essa foi minha primeira escola  

ali eu aprendi que: avisa quando chegar é uma estratégia de cuidado, atenção e proteção de um povo