A sociedade do consumo, também consome pessoas
Por Ciça Pereira
o cuidado como dimensão político-afetiva da proteção entre pessoas negras por joão marcos bigon
tá,
que fique claro que odeio a banalização da palavra afeto
mais ainda quando ela falou está acompanhada da palavra “preto”
mas é necessário resgatar a palavra nesse texto para que eu consiga conversar com você que lê
afinal, não tenho outra palavra melhor
escuto constantes relatos sobre como o silêncio de gente preta mais velha representa outras coisas para além do silêncio
lembro da grada logo no começo do memórias da plantação falando sobre como a máscara da anastácia representa o domínio da colonização sobre a boca de pessoas negras
dito isso, nós que falamos tanto precisamos aprender a entender a pedagogia do silêncio, a economia das palavras e os ditos populares
a cultura popular é verborrágica
a gente compreende isso em várias coisas mas acha que tudo precisa de uma grande performance discursiva pra acontecer
a gente é isso, uma geração barulhenta, falastrona e do discurso
a internet escancara isso né
não há diálogo
há discurso
eu discordo de vc, logo crio um vídeo resposta, um texto enorme ou um exposed
não chamou na xinxa pra desenrolar
das coisas da linguagem, as que me encantam são as mensagens e códigos que a gente inventa para educar e proteger nossa gente do mundo em que vivemos
não veste isso
leva identidade
não fala aquilo
vai com deus e volta com ele
avisa quando chegar
o “avisa quando chegar” é um dos métodos mais bonitos e sutis de dizer “me importo com seu deslocamento, com sua segurança, sei o que vc pode passar no caminho”
caminho, rota e interrupção são desde o tráfico atlântico uma questão dolorosa para a população negra
fluxo é uma questão e sempre será
ciclos escolares que iniciam e não terminam,
relacionamentos que se encerram de forma abrupta,
gerações interrompidas,
rotas diárias atravessadas por barricadas, postos de polícia ou o caos urbano
avisar quando chegar é mais do que só uma mensagem enviada
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é um dos códigos que desenvolvemos para organizar a segurança coletiva
ter dimensão de que a cidade é perigosa, de que ela ameaça o corpo, a mente e a alma de pessoas negr4s faz com que ocorra em uma simples frase a enunciação de um carinho, cuidado, proteção e noção política que talvez um “eu te amo” nunca comunicasse
pessoas que talvez sequer tenham conversado sobre coisas profundas da vida expressam seu apreço por essa mesma vida dizendo: “compartilha a localização pra que eu te acompanhe”
e as vezes estamos falando de pessoas que não terão como intervir caso ocorra algo
mas que querem saber, cuidar e atender, até por que não poderão mudar
pq no final, tem a ver com isso
a consciência de que a realidade racial na qual estamos imersos não é mutável
ela é parte de uma sinfonia caótica e torta que nós aprendemos a duras penas a ouvir, identificar, cantar e dançar
ser n3gro e caminhar neste mundo é como mapear os buracos de uma estrada em que caminhamos de olhos vendados
calculamos de forma estratégica cada passo, o ritmo, a distância e a consistência do chão
pisando muitas vezes descalços mas com a destreza de quem aprendeu aos 7 anos de idade que ter a identidade no bolso mesmo quando você está apenas de short soltando pipa na rua é mais importante do que qualquer outra coisa
quem ensina esse modelo de afeto que se manifesta no cuidado político são avós
são avôs taciturnos, às vezes grosseiros e quietos
avós e avôs netos da escr4vidão, filhos dela
que até fogem do tema e recusam essa ideia de termos raciais
mas que manifestam profundo conhecimento sobre cada coisa que compõem a atmosfera envenenada do mundo colonial
certa vez sueli carneiro disse ao mano brown que os seus pais não eram ativistas do mov n3gro, mas que eles eram dotados de profunda compreensão sobre o universo n3gro
pois é
quem me ensinou sobre cuidar da minha irmã, da minha mãe e da minha namorada ou noiva foi uma senhora que nunca falou a palavra n3gro, pr3to ou raça
minha avó apenas dizia:
gente como a gente tem que falar direito, não pode abaixar a cabeça, tem que andar bem arrumado e saber circular em todo e qualquer lugar
bem, ela não falava desse jeito mas era por aí
brilhante, estratégica, genial, preta
minha avó, balbina rodrigues da silva
mais conhecida no bairro como tia balbina
4ª série completa
elegante, bem educada, mãe de 5 mulheres putas, todas escuras, todas a frente
a vanguarda da revolução
eu fui criado nesse ambiente
essa foi minha primeira escola
ali eu aprendi que: avisa quando chegar é uma estratégia de cuidado, atenção e proteção de um povo
Por: Dr. Osei Akuamoa Júnior