Blacks Leaders
A trajetória de Renata Di Carmo no audiovisual e o silêncio que precisou romper: “Eu tinha todos os motivos para desistir, mas continuei”
Roteirista fala sobre pioneirismo, solidão, resistência e a urgência de reescrever narrativas dentro e fora da televisão

Por muito tempo, Renata Di Carmo foi uma exceção em um lugar que ainda não sabia acolher sua presença. Primeira mulher negra a assinar o roteiro de uma série na TV Globo, ela chegou ao audiovisual brasileiro nos anos 1990, quando as salas de roteiro eram majoritariamente masculinas e brancas e, quase sempre, espaços onde ela não via seus pares.
“Eu comecei a escrever para o audiovisual ali por volta de 97, 98. Primeiro fazendo alguns frilas, e depois fui contratada pela Globo. E naquele momento, eu não lembro de ter outras referências. Era um lugar muito masculino. Eu cheguei a frequentar salas de roteiro só com homens”, relembra.
Mesmo sem mentores, apoios institucionais ou projetos de inclusão algo inexistente na época, Renata construiu sua carreira com determinação e autodidatismo.
“Eu não tive um padrinho, nem um mentor. E também não havia ONGs ou iniciativas que preparassem pessoas negras para o audiovisual. Eu me sentia muito sozinha. Então, ou eu era muito determinada, ou eu não ia conseguir sobreviver”, conta.

Filha da Zona Oeste do Rio de Janeiro, a roteirista enfrentou duplos desafios: o de ser mulher negra em uma indústria que não a reconhecia, e o de trazer consigo uma vivência periférica, constantemente desacreditada.
“O mercado não estava preparado para determinados corpos. E eu vinha da periferia. Era uma mulher negra, suburbana, ocupando espaços que não foram pensados para mim. Sempre fui vista com desconfiança”, diz.
Mesmo antes de escrever suas primeiras cenas, Renata Di Carmo já havia encontrado na arte um refúgio. O teatro, que começou a fazer aos 11 anos, foi a primeira escola de criação e também de sobrevivência emocional. “As ferramentas artísticas que eu vim acumulando desde criança me davam algum tipo de suporte emocional. Era o lugar para onde eu podia correr, fosse fisicamente, indo para o teatro, ou emocionalmente, porque todos aqueles personagens estavam dentro de mim”, relembra.
Foi com esses personagens que ela aprendeu a lidar com o isolamento e a transformar a dor em potência criativa. “Muitas vezes eu dormia no colo desses personagens, chorava com eles. E fui estudar muito. Sempre fui muito curiosa, sempre quis entender o mundo. Então, quando entrei na faculdade, comecei a buscar respostas para as dificuldades que eu vivia.”
Sem mentores, Renata encontrou seus guias nas páginas dos livros.
“Como eu não tinha mentores, fui procurar os meus pares na leitura. Era com Lélia Gonzalez que eu conversava, era com o Teatro Experimental do Negro que eu trocava. Eu lia e me fortalecia ali, nas reflexões e nas palavras que eu não encontrava em outros lugares.”

Essa curiosidade pelo mundo, que nasceu ainda na infância, moldou a artista e a mulher que ela se tornou. “Eu era uma criança que gostava de ler jornal. Eu olhava e pensava: ‘Que mundo é esse que está aqui escrito e que eu não estou vendo?’”, lembra. Criada ao som de Jamelão, Alcione e Partido Alto, Renata cresceu entre sambas e questionamentos e foi no palco que aprendeu a existir.
“Quando resolvi fazer teatro, entendi que ali eu podia ser um monte de coisa. E eu gostava daquele lugar, ele me assombrava porque todo mundo me olhava, mas eu gostava. Porque quando você está no palco, mesmo que interpretando outro, você existe. E naquele instante, alguém te enxerga”, diz.
Hoje, depois de quase três décadas de carreira, Renata Di Carmo ocupa papéis de liderança, chefia salas de roteiro e dirige suas próprias produções. “Quando eu olho para tudo o que já passei, acho que o fato de ainda estar fazendo é uma premiação para mim mesma. Eu tinha todos os motivos para desistir, mas continuei. Isso é uma vitória”, afirma.
Entre os trabalhos que marcam sua trajetória estão ‘Os Quatro da Candelária’, ‘Cidade de Deus’, ‘Torto Arado’ e o longa ‘Tá pago’, de sua própria produtora. Para ela, a presença em espaços de decisão ainda é um passo que o mercado precisa avançar. “Temos executivos negros, sim, mas ainda não estamos nos lugares de decisão final, de quem de fato dita as regras e é dono do dinheiro. Esse é o próximo passo”, pontua.
Assista o trailer de “Os Quatro da Candelária”:
Ainda assim, Renata celebra a conquista de poder construir narrativas sob seu olhar, trazendo complexidade e afetos para as telas. “A gente continua denunciando as coisas, mas também quer falar de sentimentos, porque isso é político, sobretudo. O direito à felicidade, a amar, a ter uma mente saudável. O direito de ser uma mulher negra que não está esgotada o tempo inteiro.”
Para ela, o desafio de representar personagens negros vai muito além de inverter estereótipos.
“Durante muito tempo, invisibilizaram nossos corpos ou os colocaram em papéis sempre negativos. Eu mesma fiz personagens de empregada. Mas hoje, queremos existir de forma plena. Queremos mocinhas, vilãs, complexas, contraditórias. Isso também é direito à existência.”
Essa mesma visão atravessa seus projetos recentes. “Em Cidade de Deus, eu tinha um desejo muito grande de falar das personagens femininas que agem, que não estão esperando nada. Que fazem política dentro da comunidade, na rua, no trabalho, ou na própria casa. Mulheres que se movimentam”, explica.
Com o longa ‘Tá Pago’, Renata investe no humor como ferramenta de reflexão social. “O riso é um lugar super político. Durante muito tempo, o humor foi visto com desdém, mas ele ensina. O riso também pode falar de dor, contradição e do Brasil que a gente vive.”
Entre a escrita, a atuação e a direção, Renata Di Carmo segue criando com a certeza de que contar histórias é, antes de tudo, uma forma de libertação.
“Eu celebro o lugar onde estou, mas sigo olhando para onde a gente ainda precisa chegar. Continuo escrevendo porque acredito que cada história é uma chance de mudar o olhar de quem assiste.”
E, para ela, esse olhar precisa ir além do individual. “Toda a história dos heróis negros é uma história de vitória e libertação. Nossos autores, nossos políticos, nossos cientistas há toda uma gama de personagens que narram a história que a gente ainda não viu.”