Entrevistas
Anna Telles: conheça a empresária que superou as adversidades de morar na rua e hoje comanda empresa na área da beleza
Desde os desafios iniciais até as conquistas, Anna revela insights valiosos sobre resiliência, determinação e a paixão que a impulsionou a transformar sua vida e criar um empreendimento bem-sucedido.

Anna Telles compartilha sua jornada marcada de muita dor e superação, narrando como conseguiu transcender as adversidades de morar nas ruas para construir seu próprio império na área da beleza. Os desafios foram tantos, tinha tudo para dar errado, mas hoje ela pode contar uma história de triunfo pessoal e profissional que certamente motivará e inspirará outros a perseguirem seus sonhos.
De acordo com uma pesquisa da Feira Preta e do Instituto Locomotiva, 85% da população negra no Brasil tem interesse em empreender, chegando a 88% entre mulheres negras. Isso mostra que, assim como Anna, muitas mulheres negras têm o desejo de empreender, mas enfrentam desafios significativos.
Como tudo começou
“Eu comecei a empreender por necessidade. Aos 12 anos, eu aprendi a fazer tranças com a vizinha porque minha mãe usava química no meu cabelo, só que ela não sabia ler e me deixava o dia todo praticamente com química no cabelo, ou às vezes eu dormia com química e meu cabelo, um crespo fino 4c que se quebrava todo. Só vivia de cabelo “joãozinho”. Eu sofria muito bullying na escola, dos meus irmãos, do meu pai e da minha mãe por conta disso. Então, quando eu cheguei na casa da vizinha e vi ela fazer um alongamento de trança, eu comecei a perceber que havia uma solução para meu cabelo.
Eu comecei a ajudar minha vizinha na intenção dela fazer o meu cabelo porque eu não tinha como pagá-la. Só que nesse processo, para ir ajudá-la, eu tinha que tomar conta dos meus irmãos enquanto minha mãe ia lavar roupa na casa de família enquanto meu pai ia trabalhar. Nesse tempo em que ia aprender com minha vizinha, minha mãe não conseguia entender isso. Eu apanhava muito dela porque ela achava que eu estava fugindo para não lavar os pratos e fazer as coisas, já que eu cuidava dos meus três irmãos. Eu apanhava de tudo que era jeito, aliás, eu era espancada mesmo.
Meu pai e minha mãe se separaram e, na época, pediram para a gente escolher com quem queria ficar. Eu fui a única que escolhi ficar com minha mãe e meus irmãos escolheram ficar um tempo com meu pai e depois voltaram.
Eu aprendi a fazer tranças e usava esse artifício para conseguir as coisas, ajudar minha mãe e levar comida para meus irmãos. Eu ia pedir para arrumar o cabelo das meninas na intenção de ficar na hora do almoço, nem era na intenção de trabalhar com isso. Eu usava as tranças como desculpa para chegar na hora do almoço, me oferecessem comida e eu levar para os meus irmãos.
Nessas idas e vindas, minha mãe se envolveu com um rapaz que tentou abusar sexualmente de mim à noite. Graças a Deus, não chegou a acontecer o ato. Eu contei para minha mãe, mas ela não acreditou e deu um tapa na minha cara e disse que eu era mentirosa. Nesse tempo, pensei: se minha mãe não acreditou em mim, o cara vai fazer o ato, tanto em mim quanto nos meus irmãos.
Eu tenho quatro irmãos por parte de pai e, na época em que a situação estava ruim, eles nos acolheram e me levou junto com meus irmãos para a casa deles em Lauro de Freitas, aqui na Bahia. E minha mãe continuou com esse rapaz, passou muita dificuldade, cárcere privado e apanhava muito. Meu pai começou a se relacionar com uma menina da minha idade. Ele não ligava para a gente. Foi onde assumi a responsabilidade de pai e de mãe dos meus irmãos.
Eu, mesmo sendo menor de idade, decidi trabalhar para cuidar dos meus irmãos e minha tia não se importou muito e deixou. Só que eu não tinha trabalho nenhum, eu fui de fato morar na rua.
Eu dormia no Pelourinho porque é um lugar que não dorme, é 24 horas em movimento, era um lugar que me sentia segura. Passava a noite embaixo da prefeitura quando chovia e dormia dentro de transporte coletivo. No Pelourinho, é muito comum quem mora na rua conseguir se prostituir ou conseguir dinheiro com drogas.
Eu lembrava muito de uma frase que minha mãe falava: “Tomara que um carro passe em cima da sua cabeça e nunca mais você volte.” Ela desejava a minha morte ao sair ou, quando era muito carinhosa, falava que eu tinha que ir para a escola para comer porque não ia ter lanche.
Eu pensava quando estava no Pelourinho: Se acontecer alguma coisa comigo, minha mão não vem me buscar. Não tinha coragem de fazer coisas erradas e não me envolvia nessas situações. Foi uma proteção de Deus e eu me protegia dessa forma, entendendo que meus irmãos estavam me esperando.
Eu continuei fazendo tranças em troca de uma roupa, um trocado ou alguma coisa para minha sobrevivência. No Pelourinho, eu entrei num grupo de dança. Era a forma para eu me relacionar com mais gente. Eu aprendi a dançar e a me comunicar.
Na bolsa, eu sempre tinha um desodorante “herbíssimo, um leite de rosas e um sabonete”. Qualquer coisa que eu pudesse me higienizar na praia para eu conseguir me encostar nas pessoas, e não perceberem que eu morava na rua. E nesse processo eu fui conhecendo pessoas e trançando cabelos e também conheci meu esposo.
Foi meu esposo que me disse: “Anna, o que você faz é diferente”. Que é a técnica que criei o enrolado 3D. Essa técnica não dói como as outras. Eu não conseguia usar trança porque sentia muita dor, então acabei criando essa técnica.
Logo que tive minhas primeiras clientes, eu comecei a postar no Facebook os antes e depois e começou a vir gente do mundo todo na sala da minha casa.”

A falta de dinheiro é o maior empecilho para tirar planos do papel, com 64% apontando isso como o principal desafio. Além disso, 58% das empreendedoras negras que pediram empréstimo não conseguiram obter crédito.
Desafios do negócio
“No início, fiz uma sociedade com um homem branco. Eu pensava: já que ele estudou, vai fazer meu negócio ser melhor. Fiz essa sociedade com essa perspectiva de não merecimento, de achar que o conhecimento dele era suficiente porque eu estudei até 8º série, então eu achava que o que eu fazia não era suficiente. Tomamos um prejuízo de mais de 40 mil reais. Aí eu e meu esposo conseguimos recuperar sozinhos das dívidas e pagar todos os colaboradores e tivemos a ideia de ter um produto para cabelos crespos e cacheados. Porque eu via que no mercado não tinha produto para o nosso tipo de cabelo. Eu tinha que fazer várias misturas caseiras para conseguir dar um resultado. A técnica do enrolado 3D faz crescer muito o cabelo e foi a partir daí que vi a necessidade das minhas clientes terem um produto para cuidar dos seus cabelos depois de recuperado. Eu pessoalmente já atendi mais de 10 mil mulheres e recebi muita gente por causa da internet.
Tive dificuldade financeira, mesmo com o nome limpo, os bancos não davam crédito. Para ter a linha, eu e meu esposo tivemos que fazer um empréstimo pessoal. Nosso sócio não pagava os impostos da empresa e dos funcionários. O preconceito que vivi de diversas formas por causa da aparência, por mais que eu tivesse dinheiro para comprar, sempre tinha algo invisível que me impedia de fazer as coisas. Outra coisa, o acesso ao conhecimento não foi fácil, eu usei a internet para pesquisar tudo que eu pudesse sobre o meu nicho, sobre empresa, finanças, isso mudou meu game. Outra dificuldade, eu fui mãe muito cedo, eu tive que me dividir com a criação do meu filho, graças a Deus não fui mãe solo, mas eu tive de usar de artifício para minhas clientes serem atendidas no conforto da minha casa.”
Segundo o Sebrae, cerca de 33% dos empreendedores brasileiros são negros, e esse número tem crescido constantemente. No entanto, muitos negócios de empreendedores negros estão localizados em áreas com infraestrutura precária e têm menos acesso a serviços básicos.
A evolução do negócio
“Por ser minha fonte de renda, não me via fazendo outra coisa mesmo tendo colaborador. Depois que saí desse lugar da linha de frente e passei a ter mais colaboradores e entender a função de delegar, aí eu comecei a expandir para todo o Brasil e agora para todo o mundo. Tanto para o enrolado 3D, como os cursos on-line que eu ensino às meninas e com os produtos que eu vendo para a empresa e para pessoas autônomas revenderem e ter uma renda.
Inicialmente, eu aprendi a multiplicar com minha mãe, porque ela fazia um ovo e 5 pessoas conseguiam comer. Eu lembrava dessas coisas na hora da comida, lembro que quando comprava um material e fazia o trabalho, eu não gastava o dinheiro. Eu comprava mais material e fazia mais clientes. Fazia muita pré-venda, a cliente comprava antecipado. Depois, eu fui buscar conhecimento na internet, mesmo no YouTube, de como organizar as finanças e buscar crédito. Uma amiga me alertou de que a maquininha dava para antecipar os recebimentos e assim fiz, foi o primeiro investimento. Porque para comprar com fornecedor precisava de 5 mil e, na época, para mim, era muito. E hoje, ensinando as pessoas, vejo que o maior erro é esse: elas gastam todo o dinheiro e ficam sem para investir no material novamente. Esse foi o insight que tive na época de se virar com o que tem. Hoje já invisto mais de 200k de conhecimento em mim, pago mentoria, eu aprendo muito sobre meu negócio, vou atrás de quem sabe e de quem tem um conhecimento que eu não tenho. Já tive muito bloqueio de aprendizagem na escola, hoje não. Hoje, para eu ler um livro de finanças é uma diversão.”
Ainda segundo os dados do Sebrae, cerca de 24% dos empreendedores brasileiros são mulheres negras. No entanto, essas empreendedoras ainda enfrentam muitos desafios, como a falta de acesso a recursos financeiros, capacitação, rede de contatos e representatividade em setores específicos.
A razão de ter um negócio voltado para mulheres negras
“A invisibilidade diante de uma multidão é o que me fez fazer um negócio voltado para essas pessoas. Como eu vivi a rejeição na família, na escola, em relacionamentos ao longo da minha vida e em várias áreas, isso fazia me sentir invisível o tempo todo. Eu percebia que isso também era muito natural para muitas mulheres pretas, principalmente olhando na rua. Nas ruas as mulheres brancas sempre estavam de mãos dadas com o marido ou namorado. Percebia como elas eram acariciadas, eu sentada, ficava observando, era diferente. Eu percebia que muitas vezes as mulheres solteiras eram pretas e muitas eram traídas. Então, acredito que tem tudo a ver comigo, eu creio que é um ministério para falar com essas mulheres porque eu conheço as dores, que não são iguais às de pessoas brancas. É isso que me atrai para eu falar com a alma delas. Hoje a nossa marca tem o objetivo de livrar as pessoas da escravidão moderna, aquela escravidão que elas estão cheias de correntes, mas parece enfeites não consegue perceber que estão nelas como: relacionamento abusivo, dívidas, conseguir dinheiro, mas nunca prosperar e isso ser naturalizado para gente. O natural é que a gente prospere. Então, a gente vem com essa pegada de livrar as pessoas da escravidão moderna através do conhecimento, do exemplo e da inspiração.
Falar com mulheres negras é falar com uma minoria. Ainda me incomoda muito não entender que os lugares não estão ocupados por nós. Então, se existir alguma forma de eu mudar isso com minha empresa, a gente vai mudar.
Hoje a nossa persona é mais classe B e C. Eu já fui muito questionada a trabalhar com pessoas de alto ticket, mas meu coração, a minha essência pede muito é uma visão de Deus mesmo. A minha riqueza está dentro da comunidade, eu não sei explicar isso, eu só sinto. Fazer isso é além do dinheiro, até porque é um público em que na maioria das vezes ninguém aposta.
A nossa empresa hoje é o pai de muitas pessoas que não tiveram o amor paterno, mas que a gente recupera isso com a nossa marca e o impacto que a gente causa na autoestima delas, reafirmando o poder que elas têm.”

Segundo Anna a chave para virar o jogo para as empreendedoras negras é a partir do momento que tomam consciência de que estão em uma situação de desvantagem, elas vão querer sair dela.
A importância de disseminar o conhecimento.
“A importância é cumprir um propósito. Toda vez que eu acordo, eu peço a Deus duas coisas: saúde e que ele me coloque como instrumento dele aqui na terra. Para eu atravessar com luz as dores dessas pessoas. Eu sou instrumento e minha empresa é uma ferramenta, então ensinar essas mulheres é uma dessas ferramentas onde consigo livrá-las dessa escravidão moderna tanto com aparência quanto com a palavra, o ensino e o conhecimento. Eu acredito que o conhecimento liberta e a gente vive numa prisão porque não sabe que está nela e a partir do momento que tomamos consciência de que estamos nessa prisão, vamos querer sair dela. O conhecimento é a chave para virar o jogo dessa galera. Eu não consigo segurar dentro de mim o que eu sei, independentemente de estar sendo paga ou não, é algo natural, principalmente quando me sento com pessoas pretas.”
De acordo com uma pesquisa da CLAUDIA, as empreendedoras negras são o grupo com menor faturamento: 34% das entrevistadas pretas faturam até R$ 12 mil por ano.
Os ensinamentos dentro das consultorias