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Ana Paula Xongani há 10 Anos construindo liberdades: 'Criar conteúdo me permitiu existir inteira'
Nos 10 anos de carreira como creator, Xongani revisita as escolhas, renúncias e estruturas que construiu para existir como potência no mercado da criação
Antes de ser criadora de conteúdo, antes de ser apresentadora, palestrante ou consultora, ela era uma jovem negra que enxergava o mundo pelo avesso, e entendia que havia algo urgente em traduzir essas contradições. Durante anos, falou das violências, das micro e macro opressões, das estruturas que atravessam o cotidiano de quem é mulher e preta. E fez isso com a intensidade de quem não tinha para onde fugir: “eu comecei a falar da dor porque era o que eu tinha para contar.”
Há dez anos, com medo e coragem, mais uma vontade enorme de dizer o mundo do seu jeito colocaram Ana Paula Xongani no centro de uma história que mudaria, primeiro, a vida dela, e depois, a de milhares de mulheres negras. Hoje, ao celebrar uma década de carreira como creator, Xongani olha para esse percurso com a nitidez de quem atravessou intensidades profundas, transformou dor em método, força em narrativa e cotidiano em revolução.

“Eu não gostei de me ver no começo. Eu fiquei triste, adoeci. Eu tive depressão”, ela lembra, sem romantizar o início. Era 2014 e a internet parecia uma terra que prometia tudo, mas que entregava pouco para corpos como o dela. Mesmo assim, seguiu. Não por um glamour inexistente, mas porque havia algo que a chamava pra dentro da tela: a possibilidade de contar histórias a partir do centro e não das margens.
Hoje, ao falar sobre aquela fase, ela sorri com outra consciência.
“Eu não tenho peso nenhum mais. Porque hoje eu sei pra quem eu crio. Quando eu fecho os olhos, eu vejo uma mulher como eu”, diz, naturalizando a escolha que virou método.
O conteúdo da Xongani conversa com muita gente, homens brancos, pessoas indígenas, neurotípicas ou não, gente de todas as formas, mas é para suas iguais que ela fala em profundidade. “Eu não preciso explicar a página 1. A minha comunidade já sabe. A gente tá conversando ali da página 20 pra frente.”
É nessa troca que ela se fortalece. “Eu não tenho hater. Até quando discordam, discordam com gentileza”, diz com orgulho. O que pesa em seu trabalho não está no público: está no mercado, “nos desafios de ser uma mulher negra entrando em estúdios, sendo lida com menos potência, ganhando menos que outras pessoas”. Mas ela aprendeu a atravessar tudo isso com método, voz e estrutura, sempre a partir da própria centralidade.
Ser criadora de conteúdo, para Xongani, não é um rótulo, é propósito .“Eu não abro mão do meu criativo. Nem para outra pessoa, nem para uma IA. A IA pode ser suporte, mas nunca cria no meu lugar.”
O conteúdo nasce dela: do olhar, da vivência, do acúmulo que virou linguagem. Por trás da câmera, há roteiros escritos à mão, ideias que acordam com ela, gravações que acontecem entre uma reunião e um estudo.
“Interação e criação: isso é 100% eu. Porque é ali, na criação, que eu existo inteira. É ali que reconhecem a minha assinatura Isso é inegociável. O restante eu delego.”
E é aí que ela aponta algo precioso, o prazer raro de uma empreendedora que conseguiu continuar fazendo o que faz de melhor. “No Brasil, quando você empreende, você se afasta do seu talento para gerir uma empresa. Eu consegui criar estruturas para continuar perto do que eu sei fazer de melhor.”
Essa estrutura não existe à toa. Ela nasce do autoconhecimento, das fragilidades que ela assume sem medo. “Eu sou disléxica. Eu preciso de tempo de estudo. Preciso de gente que segure tudo enquanto eu estudo. E eu tenho.” E também nasce do amor: “Meus amigos não eram criadores de conteúdo. Eu precisava preservar meu campo íntimo porque eles não queriam estar ali.”
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Assim surgiu a decisão de nunca entregar a vida pessoal de bandeja. “Tudo que eu torno público, eu preciso estar disposta a conversar sempre. Se eu não quero falar sobre um assunto, eu não torno público.” É simples e poderoso, e explica por que, mesmo com família e maternidade presentes, o centro do conteúdo sempre foi ela.
“Eu queria ser protagonista do meu conteúdo. Não queria reforçar estereótipos da mulher preta que serve, que cuida, que é mãe antes de tudo. Eu sou mãe, e sou livre. Sou esposa, e sou livre. Sou profissional, e sou livre.”
Liberdade como legado
Liberdade. Essa é a palavra que conduz a década de Xongani, ontem, hoje e adiante.
“Liberdade é tema sensível para mim. É central.” – afirma Xonganii
E ela lista as liberdades que conquistou como quem abre uma janela atrás da outra:
A liberdade de ser.
A de errar.
A de não saber tudo.
A de dizer “não”.
A de se retirar de espaços violentos.
A de falar sobre descanso sem ser cobrada.
A de falar sobre beleza sem ser acusada de futilidade.
A de ser vulnerável sem perder respeito profissional.
A de ter uma equipe preta, e se reconhecer no olhar dela.
“É uma delícia entrar no Zoom fazendo meus dreads e ver minha equipe entendendo. Isso é liberdade.”
E é também símbolo de sucesso. Não o sucesso performado, das placas de conquista e dos números, mas o sucesso íntimo, aquele que se percebe na rotina, no sossego, na segurança de ocupar o próprio nome.
No fim das contas, liberdade não é o prêmio de Xongani. É a prática diária, que ela constrói para si e para outras mulheres negras que atravessam a internet procurando um espelho que não fira.
“São muitas liberdades. Algumas frágeis, outras fortes. Mas todas construídas.” complementa Xongani.
10 anos depois
Ao completar uma década de criação, Ana Paula Xongani celebra a autoria. Celebra o que construiu com método, afeto e estratégia. Celebra a comunidade que a acompanha página por página. Celebra a possibilidade de fazer aquilo que nasceu para fazer: criar, fortalecer, iluminar caminhos.
Xongani chegou até aqui porque nunca negociou consigo mesma, porque preservou o íntimo para que o público fosse forte, porque transformou vulnerabilidades em estrutura, porque fez da liberdade uma prática.
E porque, finalmente, decidiu ser o centro da própria narrativa. E é por isso que, dez anos depois, ela continua sendo um dos nomes que mais expandem o que significa ser uma creator no Brasil com coragem, com alegria e com liberdade.








